o céu das hortênsias azuis

 






Desde que a minha avó morreu, não voltei a entrar na minha rua.

Recusava a ir a uma casa que foi invadida por estranhos

Onde ela já não me espera

Hoje ganhei coragem

A Hortênsia foi substituída por uma roseira. A videira e o limoeiro resistiram à mudança

A quinta do Jaime está diferente

Será que ainda tem amoras silvestres?

O azulejo de S José esperou pela minha vinda

A porta 187 continua a mesma

Imaginei o telefone por detrás da porta

E vi a Dona Hermânia na cozinha a preparar os seus pastéis.

Eu estava no alpendre onde prometia um dia lá levar o meu amor

Ao meu bairro

O bairro do Amor

viver e querer

No outro dia alguém me apelidou de sinusoide.

Não dei parte fraca. Depois de ir ao dicionário, sorri e aceitei.

Contra factos não há argumentos

Para que vamos nós negar o óbvio?

Juro que gostava de ter um meio termo

Ser uma espécie de planície alentejana

Mas caramba, eu nasci na Covilhã

Subidas e descidas é mesmo comigo

Altos e baixos

Euforia e drama queen

Se fosse diferente não era eu

E o importante é ter a capacidade de me ir elevando, depois dos meus

estados mais depressivos

Agradecer o ter saúde

O ter 2 filhos fantásticos

O ter amigos que me dizem o quanto sou fantástica só para me motivarem (cambada de mentirosos)

E ter alguém que tem paciência para me ouvir

Que me permite chorar

E que ao seu jeito sempre romântico, me consegue chamar coisas fofinhas

Ainda há esperança em certos homens das cavernas

 

E por aqui continuo a insistir no meu bloco de notas

Um dia fará sentido.

Intuo que sim.

No século passado, acreditava que estarmos vivos é uma espécie de bilhete premiado de um qualquer jogo de azar.

Que alguém sobreviver, vivendo, durante anos e anos, e morrer de velhice e cansaço, é o supra sumo da felicidade possível

O prémio dos prémios.

A cada segundo podemos ter um acidente, uma doença incurável, uma morte súbita, e pufff

The end

E há quem morra numa noite de Estio, num céu estrelado, onde as rugas e o manto branco dos cabelos seja o tal altar celeste que idealizamos

Com uma vida plena

De tudo

Mas tal como num bilhete premiado, o factor sorte... A probabilidade de acontecer....

Por isso, talvez, eu seja assim

No fundo, sendo imensamente grata por estar viva, por ter nascido mulher, por viver num País onde me dão o direito e liberdade de escolha, a sinusoide só ambiciona ter alguém especial

É isso

Se não tivermos com quem partilhar, o prémio, o bilhete premiado, não tem qualquer valor.

Posto isto, como posso eu desistir?

poesia







E se temos coração

Que seja para sentir

Seja tristeza ou alegria

Dor ou empatia

E se temos braços

Que sejam para abraçar

Quando esta pandemia terminar

E se temos olhos

Que seja para olhar

Mesmo que de olhos fechados

Que, dizem os poetas

É quando vemos melhor

E se temos vida

Que seja para viver

Intensamente

Sem medo de morrer

Mas com medo de não viver

Com a tal sede de infinito....

A vida meus amigos

Sem poesia, não seria

Apenas existia

Pai

 

Da janela do meu quarto vejo o hospital

O mesmo hospital onde os meus filhos nasceram

E o mesmo hospital onde num andar especifico, conheci o corredor da morte

Todos os que ali passaram no mês em que o meu pai entrou (e de onde não regressou a casa) acabaram por morrer.

E lembro-me de cada história

Vivias a cada dia que lá ia

Fazia o percurso a pé, e enquanto caminhava e observava as pessoas a passar por mim, imaginava como estaria o meu pai naquele dia

Que podia eu dizer-lhe para lhe atenuar as dores, porque a morfina já não o fazia.

Tinha o ritual de lhe levar o Jornal do Fundão todas as sextas-feiras

E durante a semana, ia conhecendo amigos que vinham de todo o lado do País....

E foi impressionante conhecer tantos e diferentes camaradas

Foi uma experiência fantástica

Perguntavam ao meu pai o que estava ele ali a fazer

Isto porque quando chegava a hora da visita, ele vestia a capa de Super Pai.

Fingia que não tinha dores

Tinha aquele discurso fluente e empático que fez com que tivesse tantos amigos.

Um fingidor o meu querido pai.

E de noite só chamava as enfermeiras para lhe darem morfina quando via que era uma hora razoável

Isto foi-me dito mais tarde por muitas delas

E porque hoje é o dia dele, deixo um exemplo do que é ser pai:

Num dos dias a menos do meu pai, foi visitá-lo um amigo que tinha o filho internado, também com um cancro

Infelizmente, o Pedro também já cá não está e tinha a minha idade.

O meu pai ouviu a esperança daquele outro pai. na cura do seu filho e quando ele foi embora olhou para mim e pegou-me na mão

E só me disse:

"Sabes filha, ainda bem que sou eu aqui a estar.

Eu de mim aguento ir embora. Se fosses tu, não ia conseguir aguentar a dor"

Talvez isto seja ser pai.

Tenho tantas saudades tuas.

Iniciei finalmente actividade por conta própria.

Sei que era esse o teu sonho

Espero que estejas orgulhoso de mim

Até já



O exemplo e a lição

true come dream

 

Passou mais de um ano, e todos os dias me lembro do meu pai.

Se por um lado tive o privilégio de me poder despedir e dizer tudo o que queria dizer, assistir num mês a tanto sofrimento transformou-me.

Nunca pensei que fosse tão difícil

Nem vos consigo explicar o que sinto sempre que me lembro de cada dia a menos na vida do meu pai.

Agora sei, que quando perdemos alguém que amamos incondicionalmente, nunca mais seremos os mesmos

Sinto tanto que tenha sido assim

Faltou tempo dentro do tempo que tínhamos

Faltou tanto tempo

fundão

 Quando era miúda, ir passear ao Fundão era algo que o meu pai adorava.

E lá íamos.

Nunca percebi muito de marcas de automóveis, mas sei que existia um Fiat 127 verde

E como gostava o meu pai daquele carro.

O verde deve ter sido por causa do Sporting.....mas isto digo eu.

Adorava ter a rádio do carro ligada, e muita vez na RCB onde de quando em vez gostava de ouvir os relatos de futebol do afilhado

Mas o que eu gostava mesmo era de ouvir música com ele.

E ao passar na Adega Cooperativa do Fundão cantarolava sempre o Jerónimo.....com aquela letra fantástica.

Lembro-me de perguntar ao meu pai muitas vezes quem cantava aquilo.

Mas só percebi quem era aquele músico há 10 anos atrás.

Nunca me tinha cruzado com ele.

Nem nunca o imaginei como sendo real.

E isto chega a ser engraçado

Isto para vos dizer, que quando dou por mim a reler as páginas do meu livro, tanta amálgama de sentimentos se confundem em mim no presente.

Isto de viver é mesmo um devir alucinante

Idealizamos pessoas, e acho que há aquelas que nunca pensamos vir a conhecer.

Porque estão naquele lado inalcançável

Uma espécie de referência nas nossas vidas

E eles nem sabem disso.

O Intervalo de estrada que medeia entre a Covilhã e o Fundão é feito de saudades. De memórias. De Amor

De regressos ao passado

De futuro

domingar

 

A Isabel....

Descobriu que tinha a doença dos pezinhos, já com dois filhos.

E começou gradualmente a regredir nas suas capacidades motoras

Era de partir literalmente o coração de quem a via e presenciava a sua luta diária....

Para andar, para levar os filhos à catequese, para viver

Pouco antes de morrer, perguntou-me se ia beber com ela um chá ao Centro Cívico.

Naquele compasso de espera que mediava entre a catequese e a eucaristia

No dia a seguir era domingo e foi ela que me ensinou o conceito de domingar

Explicou-me já com o seu pacemaker no coração, que enquanto esperava que alguém a chamasse para um transplante, ela só esperava durante a semana que chegasse o domingo

E no domingo, se dava ao luxo de domingar

De aproveitar a companhia dos filhos

Do amor

De se sentar no sofá sem pensar na roupa que tinha para passar ou no pó que insistia em renascer

Tenho saudades tuas Isabel.

Hoje quero e devo domingar

crescer

 
Sempre havia sido a mais nova....

A mais nova dos irmãos

A mais nova dos primos, que eram muitos

A mais nova dos filhos

A mais nova dos netos

Dos tios

Enfim

Lembravam-se de mim para ser a menina das alianças do clã Vaz e pouco mais

O meu irmão sempre foi eloquente e inteligente

A mim ninguém ouvia

Então escrevia

Ouvia musica

Vivia num mundo meu, onde era feliz

E sempre fui feliz

A viver com a minha Avó

Na minha vida em que falava com as estrelas

Aprendi a cozinhar muito nova

A ser independente

A trabalhar no quiosque do meu tio

E nunca me tinham colocado um bebé nas mãos

A primeira vez que isso aconteceu, tinha pouco mais de vinte anos

E disseram que era Meu

A minha primeira vez

Como mãe

De um ser mais novo que eu

E não falo muito do Alex...mas a verdade é que ele nestes quase 20 anos me ensinou a dar os primeiros passos no mundo dos adultos

Foi a primeira pessoa que me ouvia, mesmo antes de nascer

E que sempre que me via, parece que no mundo só existia eu no mundo dele

Um amor que não se explica

Percebi que era importante

E tenho, desde esse dia, aprendido a olhar para os meus cabelos brancos e interiorizar que um dia serei a mais velha

Que a vida é um sopro de altos e baixos emocionais

De extrema dor e picos de felicidade extrema

E aqui e agora, quero dizer-vos que viver é uma aventura fantástica

E envelhecer escrevendo o meu bloco de notas é algo que me tem deixado em paz

Obrigada por desse lado, me "ouvirem"

na penumbra da cidade

 

Hoje, porque no guião da minha vida estaria escrito que iria percorrer as ruas da minha cidade....

Como as percorri milhentas vezes nestas 4 décadas....

Com a memória de quem se lembra de cheiros, de gente que ficou na história da gente, de cenários que mudaram de aspecto....

E no entanto, sempre que o guião me oferece a catarse de estar sozinha no meio da minha gente, percebo como a Covilhã está dentro de mim

Cada lugar. Cada ruela. Cada pedaço de presente que se confunde com o meu passado e me enche de saudades de quem partiu antes de mim

Hoje voltei à minha escola....confinada, como tudo à sua volta

E no meio das memórias passo por um daqueles becos onde parece que o sol tarda a nascer

Onde a roupa se estende na rua, e quase que bate no chão por onde passa gente, com eu

E num quadradinho minúsculo que alguém chamou de janela estava uma senhora de idade

Digo de idade, pelas rugas e pela neve do seu cabelo

E entre o estendal e as molas, olhava para o mundo confinado por onde eu passava

Estranhos que passam de quando em vez

Mascarados

E no meio dos meus tormentos diários, o meu olhar ficou ali preso

A divagar sobre quem seria aquela senhora

Qual a sua história

No mundo da Cristina Isabel, perceber o guião ainda é um desafio diário

E a vida de cada um de nós, um livro por abrir com páginas ainda por escrever

Na roda viva dos meus dias, tive vontade de parar.

Como parece que o tempo parou naquele quadrado de vidro.

Vontade de ter tempo.....para do lado de cá da janela dizer que ninguém está sozinho.

A cidade hoje parece deserta......

Mas se olharmos bem......em cada quadradinho há vidas

Talvez na esperança que alguém repare nelas