"re"começar

Hoje conheci a Olinda.
A Olinda é uma mulher como tantas mulheres
Emigrou muito nova para a França.
Lá casou.
Nunca teve filhos e o homem culpa-a ainda hoje por não lhe ter dado um herdeiro
Como se a única função de uma mulher fosse a da reprodução.
No fim de decadas a trabalhar de sol a sol, decidiram juntar as poupanças e vir para Portugal.
Abriram uma mercearia numa pequena aldeia do interior e continuaram a sua vida.
Com 48 anos sem o marido saber, ela decidiu tirar a carta de condução.
E gradualmente começou a ser mais independente
Hoje, aos domingos, enquanto o marido manda vir com a vida e passa o dia na sueca e nos copos, ela faz caminhadas.
Durante a semana faz hidroginástica, ginástica e canta num coro.
Enquanto o marido, continua em casa a lamentar-se da pouca sorte que teve, ou a embebedar-se ou a jogar às cartas.
A Olinda tem hoje, 78 anos, tem um casamento de 50 anos, onde sempre foi infeliz e ensinou-me mais uma vez o que é ter esperança.
Ensinou-me que tenhamos nós a idade que o calendário dita, estamos sempre a tempo de recomeçar.

pássaros

Da janela do meu quarto, quando o Sol nasce de mansinho, todos os dias um pequeno melro, sobe a um poste e canta em direção ao prédio aqui da frente.
No sexto andar, existe um passáro engaiolado, que rotineiramente a minha vizinha coloca na varanda.
Tenho em mim que o melro morreu de amores por aquele prisioneiro, e todos os dias lhe faz uma serenata
Na amálgama dos meus pensamentos, tento imaginar o que ele lhe diz.
Imagino que lhe fala de como é a vida para além daquela gaiola.
Como é bom voar ao som do vento.
Sem limite e sem destino.
Imagino que lhe promete que um dia o vai resgatar e terão um ninho só deles, num condominio simpático de humanos bons.
Diz-lhe talvez, que também ele se encontra cativo daquele amor, e que trocaria a sua liberdade por um canto que não fosse triste.
Não sei.
Gosto de o ouvir.
Já se tornou um hábito
Um dia terei saudades dele

bijou

Quando a minha vida parece estar prestes a terminar, uma das coisas que ainda me dá alegria é a música.
Quando era adolescente adormecia ao som do "Oceano Pacífico"
Um dia, lembrei-me de escrever uma carta ao João Chaves, a pedir que passasse uma música.
E um dia, quando estou prestes a adormecer oiço aquela voz "ler-me"
Dizer que aquela carta não parecia escrita por uma miúda.
Passou a minha música
Pequenina, como eu.
"Bijou"
E fiquei feliz.
Adormeci tão feliz.

meu camarada, meu velho, meu pai

Colado ao palacete jardim mesmo em frente à fonte das 3 bicas, na minha cidade, existia um café.
O café (que ainda em resquício do dia da liberdade), onde tomei pela primeira vez o meu primeiro café com o meu camarada, o meu velho, o meu pai.
Pode parecer uma tolice, um gesto sem importância, mas com os meus 15 anos o meu pai estava a permitir-me entrar no mundo dos adultos.
De uma forma gradual e subtil
Um café.
E eu fiquei tão feliz naquele dia, que me lembro de tudo como se tivesse sido hoje,
E hoje, passei lá.
Naquele espaço fisico.
E o café foi demolido.
E mais uma vez pode ser tolice, mas senti que me amputaram parte da minha história,
Vim com calma a pensar no assunto.
A cidade vai mudando a sua história, mas ninguém pode apagar as minhas memórias.
Seja o que for que ali vá nascer, aquele será sempre o meu primeiro café.
Desejei também que não destruissem um dia a casa da minha avó.
Sei que se o fizerem, eu já cá não estarei, e já não terá importância.
As pedras da calçada contam histórias,
E hoje, estou particularmente triste.
Mas passa.
Ninguém destroi as nossas memórias

o medo, o escudo e o sorriso

Noutra vida, conheci um menino muito especial.
A sua sensibilidade, levada a um extremo quase que rídiculo, fazia-o infeliz.
Porque quando verbalizava o que sentia, como via o mundo em tons rosa, quando achava que todos eram seus amigos, porque na verdade, ele era amigo mesmo de quem nem conhecia, riam dele.
Riam dele e não com ele.
E isso a cada dia o tornava mais infeliz.
Dentro do seu mundo da fantasia, onde ninguém o podia magoar mais, encontrou então uma solução perfeita.
Percebeu que ele não conseguia mudar a sua personalidade e que seria incapaz de se diluir no mundo em que vivia
Na sociedade que lhe era imposta.
Tatuou então no rosto um enorme sorriso e inventou uma magia: lágrimas invisíveis.
Desde esse dia, o baluarte estava solidificado.
Ninguém mais o magoaria, porque só viam um enorme sorriso
E sempre que chorava, as lagrimas eram imperceptíveis ao olhar comum
E foi perfeito
Ou seria
Não fosse a tristeza profunda que se foi instalando naquele sitio onde ninguém chegava
Quando deixou de ser humanamente impossivel reprimir a dor, a magia das lagrimas desvaneceu.
E aconteceu o inevitável.
Aquelas lágrimas eram tão fortes que apagaram a tatuagem do seu rosto.
E pela primeira vez o essencial passou a ser visivel aos olhos dos outros.
Que aconteceu depois?
Alguém lhe peguntou se estava bem.
E depois outro. E mais outro.
Ele nunca esteve sozinho na verdade.
Só tinha medo.
Acho que, com o tempo, conseguiu ter sorrisos dele, verdadeiros.
Quero acreditar que teve um final feliz.
Porque não temos que ser perfeitos.
Se formos verdadeiros, o tempo vai ensinar-nos onde pertencemos.

no voo do tempo

Costumo dizer que venho de uma familia de gente "envelhecida"
Isto porque sempre fui eu, durante decádas a mais nova de todos eles.
Sendo o meu pai o mais novo de quatro irmãos, eu sempre fui a mais nova dos netos.
A mais nova dos sobrinhos
A mais nova dos primos
A mais nova dos irmãos.
A menina das alianças imaginem
Isto para vos dizer que a primeira vez que convivi de perto com um bébé, tinha 24 anos e era o meu filho.
A minha experiência foi passar de ser a bébé para cuidar de um.
E estava sozinha nisso
Nunca houve ninguém.
A gente "envelhecida" estaria mais envelhecida, então sempre fui mãe a tempo inteiro e aprendi com o meu filho.
Aprendemos ambos, isto de criar laços
Ter um ser tão frágil e tão dependente de mim, foi a maior responsabilidade da minha vida.
Eu era o mundo do meu filho.
Ele, passou a ser o meu.
Hoje quando olho para o meu engenheiro barbudo, continuo a vê-lo com a responsabilidade da primeira vez que o peguei ao colo e lhe prometi que estaria sempre aqui.
E ele....todos os dias me diz que me adora.
E eu sei que sim, porque ninguém me olha como ele me olha.
Não sou uma mãe perfeita, mas sou uma mãe a tempo inteiro.
Cheia de falhas e de medos.
Mas ninguém me ensinou.
E nem sei porque vos escrevo isto, mas hoje, tive saudades dos tempos em que os meus filhos eram pequeninos.
O tempo voa.
E o amor faz-nos crescer para o fim da estrada com esperança e não com medo.
É isso

este dia, teu

Há precisamente 4 anos, celebrei o último aniversário do meu querido pai.
Não sabia que seria o último.
Nunca sabemos na verdade, quando estamos a beijar ou a abraçar alguém pela última vez.
Se eu soubesse?
Se eu soubesse teria esquecido por uns meses os meus problemas e aproveitaria cada segundo.
Ainda me contou onde me fez.
As suas aventuras além mar
Porque tinha ele tantos mas tantos amigos
Ensinou-me que a palavra camarada não tem que ter uma conotação política depreciativa
Camarada, é estar sempre aqui.
Para vos ajudar
E colocar os meus problemas de lado por aqueles que amo
Amo-te pai.
Amar-te-ei sempre
E tenho pena de não o ter verbalizado
Hoje, será sempre o teu dia